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Uma pequena comunidade em número, mas gigante no talento de contar a história de um povo através da pintura e do bordado das folhagens e animais presentes no território Ofayé.
Na aldeia localizada a pouco menos de 10 quilômetros de Brasilândia, câmeras e microfones disputavam espaço para registrar o feito inédito que acontecia ali. Em 2.475 hectares, as 126 pessoas das últimas 32 famílias Ofayé do mundo, ganharam a atenção do País pelo que move a comunidade.
Ramona Coimbra Pereira tem 40 anos, é uma das lideranças da aldeia, vice-cacique, está à frente do grupo de artesãs, e quem em ofayé se chama “Fokoi Fwara”. “Significa pé de tamanduá, que é igualzinho ao pé de um bebê. Meu avô, assim que me viu, viu meu pé e que era igual, ficou Fokoi Fwara”, conta.
Embora seja da etnia Ofayé, Ramona nasceu longe do território, no período em que seu povo foi expulso da terra e viveu entre os Kadiwéu, próximo a Bodoquena. “Lá tem uma extensão muito grande, e acharam que o Ofayé ia se adaptar lá, mas não se adaptou porque a realidade de lá é totalmente diferente daqui. Os Ofayé sempre viveu aqui, a vida toda, desde sempre, à beira do rio, desde Taquarussu, Ivinhema, essa região todinha subindo e descendo sempre foi a região dos Ofayé”, contextualiza.
O artesanato ressurgiu na comunidade em meados da década de 2010, através de cursos que ensinaram as mulheres a transpor o desenho da memória para o tecido. Até então, a história da etnia vinha sendo passada para a arte apenas através do arco e flecha. “As outras coisas não tínhamos mais, se perderam. Quando veio esse projeto para a aldeia, foi de alguma forma para revitalizar a história do povo”, lembra a vice-cacique.
O trabalho feito junto às mulheres “tirou” o desenho delas, para que se tornassem pinturas e bordados. “Não é que ensinaram a copiar, mas ensinou a tirar o desenho dela. Tipo: imagina um tatu, eu vou desenhar um tatu. Não vai ser igual. Você vê que os desenhos são todos diferenciados, é quase parecido, mas não é. É a imaginação delas”, explica Ramona.
Por trás do artesanato, o tema escolhido reflete a história, o pertencimento e também o medo de um povo que já disse adeus ao território. “Quando foram embora para outra terra, os animais ficaram tudo para trás, e isso daqui veio para trazer. Um dia, uma delas me falou que era importante desenhar os animais, ‘porque vai que um dia a gente perde de novo’?” reproduz a vice-cacique.
Ao falar elas e delas, a vice-cacique se refere a 16 mulheres artesãs da região que passaram pelo 1º Empretec Indígena, realizado no início do mês de abril, no município de Brasilândia, em Mato Grosso do Sul, entre elas, a anciã Neuza da Silva, de 64 anos.
“Nasci aqui na aldeia, nesse município mesmo, de pai e mãe Ofayé”, se apresenta. É dela a famosa toalha que despertou ainda mais o orgulho da cultura do povo ao aparecer em uma novela das 9, no ano passado.
“Eu que fiz aquela toalha, quando eu vi, falei ‘ué, pra onde minha toalha foi parar?’ Eu nem acreditei né, Foi alguém que levou lá, que comprou, aí todo mundo ficou, veio em casa falar. Nem acreditei”, recorda.
A toalha tinha folhagens e animais, e desde então, dona Neuza segue recebendo pedidos para costurar mais. O bordado, a costura e a pintura foram aprendidos ali, na comunidade, e hoje são as atividades que ela mais gosta de fazer. “Gosto de tudo, costurar, bordar, pintar, tudo”.
Uma das particularidades do trabalho do povo Ofayé é imprimir nas estampas também sua escrita, já que falantes, mesmo, da língua materna dá para se contar nos dedos. “Eu gosto de falar, mas eu não tenho mais ninguém para conversar comigo. Tem só minha prima, mas ela mora longe, e quando a gente se encontra, conversa em ofayé”.
Dona Neuza até tenta nos ensinar como cumprimentar alguém ao chegar no ambiente, mas passar a sonoridade para a escrita é tão desafiador quanto tecer a memória de um povo.
“Pra quem não sabe é difícil, as letras mesmo eu não sei escrever nada”, diz a anciã que sonha em ver a continuidade da língua, da cultura e do artesanato nas próximas gerações da família. “Meu sonho é ver meus filhos, meus netos, aprender também, né? É uma oportunidade. A gente não tinha nada, ninguém conhecia nós, nada. Agora vem bastante gente aqui passear, comprar, que a gente faz”, narra orgulhosa.
Cacique da comunidade Ofayé Anodhi, única aldeia da etnia no País, Marcelo da Silva Lins, escreve e explica que ‘Anodhi’, significa “nossa terra”, território hoje ocupado por 32 famílias e que contabiliza os 126 últimos Ofayés do mundo.
Aos 40 anos, ele vem de uma família de Ofayés, filho da anciã Neuza, e que sabe de cor a história de seu povo. Para chegar ao bordado e às pinturas de hoje, o cacique avisa que é preciso costurar presente e passado. “Tem que começar a contar um pouco da história da nossa população indígena Ofayé. Na década de 40 a 60, o nosso povo era estimado em 2.200 e poucos em número de população. Durante todas essas décadas, nós fomos massacrados, e perdemos muitas vidas”, ensina.
Retirados do território tradicional em meados dos anos de 1960, e levados até a região de Bodoquena, a população não se adaptou, e tentou voltar sozinha para a “nossa terra”.
“Muitos morreram e muitos seguiram para outros lugares perdidos, sem saber a direção de voltar. Aqueles que voltaram e chegaram aqui nessa época da década de 60, 70, e não tinha mais nada. Foi assim que começou uma andança nas beiras de rodovia, fazendo acampamento até que se resolvesse a nossa questão fundiária. Nessa época, os nossos líderes, que hoje não estão mais aqui entre nós, travaram uma batalha por anos e anos. Me lembro que eu era criança nessa época, e aí eu ficava olhando as lideranças falando, falando, batendo naquela tecla”, narra Marcelo.
Até que a responsabilidade chegou em Marcelo, que conta ter estudado para aprender sobre o movimento indígena, de diferentes etnias, dentro e fora do Estado de Mato Grosso do Sul, e se tornar cacique. Mais adiante, ele também seria testemunha da resistência dos Ofaié através da linha.
“Em 2011, nós juntávamos um grupo de 20 mulheres, encabeçado por minha mãe, dona Neuza, que é anciã, e aí começava a fazer e a pensar que hoje, no mundo que nós vivemos, o massacre que nós vivemos, perdemos a vida e perdemos a natureza, nós não temos mais os apreparos de fazer o arco e flecha, de fazer os nossos colares. E aí nós viemos adaptando aquilo que nós temos hoje, conseguimos realizar os nossos artesanatos, a passo lento de início, mas que ao longo do tempo, foi ganhando espaço. Começou a sair para a cidade do município, depois foi para outra cidade, depois foi para o estado, depois cruzou a fronteira do nosso Brasil, chegou a ir para a Espanha, Canadá, o nosso artesanato”, relata.
Assim como as mulheres ofayé costuram bichos e folhas, a história entre o artesanato e o Empretec Indígena foi sendo tecida, a partir de conversas entre lideranças indígenas da etnia e o Governo do Estado de Mato Grosso do Sul.
Na busca por ter o trabalho da comunidade mais valorizado e reconhecido, Marcelo Silva relembra que a primeira porta que se abriu para a ideia do Empretec Indígena foi através da Cidadania. “Conversando com a Secretária de Cidadania, ela pediu para mim contar um pouco da história do povo e eu falava. Ali nasceu a ideia de trazer o Empretec para a população indígena, e ela fez esse compromisso de fazer o primeiro dentro de um território indígena. Eu falava: ‘mas como, se nós somos tão pequenininhos em vista de outras grandes populações que temos em nosso Estado?”, recorda.
Em números, Mato Grosso do Sul, segundo o IBGE é o terceiro estado com maior população indígena do País. São 116 mil habitantes indígenas, que estão presentes em todos os 79 municípios, e pertencem a oito etnias, a menor delas é a dos Ofayé.
“Pra mim, como liderança, como cacique, eu me sinto muito honrado, porque hoje a nossa população é uma das mais pequenas, mas a gente vê que também existe. E se está acontecendo aqui esse seminário é pela visão que tivemos dentro desse território, da vontade das mulheres em progredir, em crescer. Nós temos potencial de crescimento, isso foi provado nesses dias de aula, queremos e vamos conquistar os nossos espaços. Queremos buscar a nossa autonomia, a sustentabilidade do nosso povo sem deixar de ser indígena”.
Facilitador do Empretec há 31 anos, o consultor do Sebrae/MS Francisco Júnior já levou formação para empreendedores, grandes produtores rurais, e agricultores de pequenas comunidades, mas faltava no currículo chegar até as comunidades indígenas.
“Comecei a pensar num modelo de trabalho que poderia ser oferecido para eles, e aí esse modelo de trabalho que veio ao encontro exatamente com aquilo que a Secretaria da Cidadania quer, que é o empreendedorismo e sustentabilidade”, contextualiza Francisco.
O Empretec não é uma novidade em Brasilândia. O Sebrae MS encontrou junto à Prefeitura um grande parceiro para o desenvolvimento dos trabalhos, que deu o suporte para que as pesquisas começassem na comunidade, cerca de quatro meses atrás.
“A partir desse momento eu vim para cá, para a comunidade, entender, conversar, fazer entrevistas com as mulheres, com os homens, aquela coisa toda, e onde o Sebrae definiu que seríamos a primeira turma, e que seria feita com as mulheres”, completa o facilitador.
Francisco Júnior explica que a metodologia do Empretec se manteve íntegra, e apenas a “musculatura” se adequou à realidade indígena, também à medida em que a convivência entre eles se estreitava. “O que eu espero que vá mudar aqui? Já está mudado, as mulheres já estão querendo produzir o tempo inteiro, estão com a cabeça cheia de ideias. No seminário do Empretec, a gente substitui todos os conceitos técnicos de empreendedorismo por experiências reais. Eu mostro pra eles como é que se faz hoje para definir um objetivo, mostro como é que podemos melhorar a eficiência dentro de qualquer processo, como fazem e agora é com elas”, resume.
Para a secretária de Estado da Cidadania, Viviane Luiza, o Governo do Estadod e Mato Grosso do Sul é instrumento para empoderar grupos indígenas, em especial, mulheres.
“Autonomia, desenvolvimento sustentável, e para além disto, é pensar no empoderamento e para que também mude uma chave não para as populações indígenas, mas para a sociedade não indígena, de ver toda a potencialidade que as comunidades indígenas têm e que a diversidade cultural sul-mato-grossense passa pelas comunidades indígenas”, enfatiza.
Antropóloga, Viviane Luiza também pontua que o Empretec Indígena adaptou a metodologia para que realmente seja respeitada a cultura, as tradições e os saberes ancestrais.
“O resultado é este, é uma prática que o Sebrae quer levar para todos os estados, os municípios que têm comunidades indígenas. Não tenho dúvidas de que, a partir de agora, a cultura indígena criou a capilaridade e vai para o Brasil afora, para o mundo com o primeiro Empretec Indígena”.
Paula Maciulevicius, Comunicação da Cidadania
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